Foram dias difíceis para ela aqueles de há mais de quarenta anos. A anemia profunda, o cansaço e o abatimento lhe
levariam a uma inevitável internação. Espalhou os filhos, seis ao todo, todos de partos difíceis, pelas casas dos
parentes, e estava só em casa naquela manhã, se arrastando como podia pelos
cantos, deixando as coisas no jeito à espera do marido que a levaria para dar
entrada no hospital e, enfim, descobrir sobre que mal lhe acometia para aquela hemorragia
de dias.
Foi quando
recebeu uma visita inesperada de um estranho andarilho: barbas compridas e
brancas e cabelos idem; roupas de um algodão cru e limpo apesar de surrado. Ao
abrir-lhe a porta, esse lhe cumprimentou com um bom dia, simplesmente, e lhe
perguntou com uma voz confortante: “Está doentinha, não é, minha filha?” Tamanha
era a paz e a segurança que esse estranho irradiava que ela não teve medo algum
de deixar-lhe entrar e sentar-se, respondendo-lhe com a mesma simplicidade: - “Sim, estou!”
Você deverá
fazer o seguinte, começou a dizer o senhor de barba branca: um chá bem forte
de canela. Tome-o todo! Daí, prepare um banho de água quente e descanse o corpo
imerso nessa água. Não se preocupe comigo, faça de conta que não estou aqui, vá
cuidar de você, ordenou o senhorzinho.
Assim ela fez:
o chá extra-forte de canela e o banho bem quente, em seguida, na casa de banho.
Cólicas profundas, como se fora dar à luz, lhe vieram e logo ela soube o porquê.
O chá indicado pelo estranho mais o banho morno fizeram com que o seu organismo
expulsasse um feto morto há dias -
eis a razão das hemorragias, das dores, da fraqueza ...
Contando-me o
caso naquela simplicidade brejeira toda, e do alto dos seus bem mais de setenta anos, nem viu o quão espantada eu estava e
boquiaberta, perplexa. Meu, Deus, que estória! Pensava eu.
E ela continuou me contando: enterrei-o
bem ali, no fundo do quintal, dentro de uma caixa de sapato. Já tava todo formado o pequeno ... Após isso, o senhor me mandou tomar outro banho morno, e tornou a dizer: Não se preocupe comigo, faça de conta que não estou aqui, vá cuidar de você! Isso me renovou as
forças e me fez sentir fome que há muito não sentia. Fiz um arroz de carreteiro
pois já era hora do almoço e o marido estava pra chegar. Quando chegou, você pensa
que ele estranhou aquele senhor barbudo e sentado na nossa sala? Não. Engataram
uma prosa boa, como se fossem velhos conhecidos. O senhorzinho lhe disse a que veio, me acudir, e que não
precisava se preocupar mais comigo nem me levar a hospital algum, que eu estava
curada e que podíamos pegar nossos filhos de volta da casa dos parentes. Sendo
que nada dissemos a ele de filhos espalhados por casas de parentes.
Não soubemos
qual o seu nome, prosseguiu ela, ou de onde veio, se tinha família, onde morava ... Nada. Nem nos
veio no pensamento a ideia de perguntar, disse-me ela. Simplesmente estávamos
ali com aquele estranho como se estivéssemos com um ente querido em visita
colocando a prosa em dia. Ele não quis beber nem comer, nem café tomou. Depois
do nosso almoço só reclamou cansaço e pediu para dormir nalgum lugar. Cochilou em
cima de alguns bancos juntos e, no meio da tarde, levantou dizendo que deveria
ir embora antes da chuva chegar. Eu e o marido estranhamos pois não havia sequer
nuvens no Céu naquele instante. Ele insistiu e nos disse que tinha que seguir
seu caminho. E assim foi. Ainda lhe ofereci uns cachos de banana, umas quitandas, perguntei se
havia alguma coisa que pudéssemos fazer para lhe agradecer, mas ele não quis
nada. Despediu-se e se foi.
Contados
alguns minutos, não, segundos, disse-me ela, choveu tanto pras bandas desse Cerrado, uma
chuva que nunca se viu antes na história dessa fazenda. Nada de só chuvisco ou chuva, chuvarada: foi uma tempestade de lavar chão e alma. Um desassossego pros bichos. Alagou represa, transbordou o córrego, destruiu roçado, arrancou telhado. Entrei em
desespero, disse ela, e pedi pro marido que fosse atrás do senhorzinho porque essa chuva podia
até matá-lo.
Ele foi, mas não encontrou ninguém e chegou dizendo que a chuva choveu
apenas e unicamente na roça deles – da porteira pra lá o Céu estava mais limpo que a roupa
de algodão do senhorzinho que salvou a vida da tia naquele dia. "Sim, eu sentia que
estava morrendo, e seria naquele dia, e ele me salvou – aquela alma boa ou anjo bom mandado
por Deus me salvou", concluiu ela.
Não preciso
falar aqui do tamanho do “arregalo dos meus ói” quando a tia terminou de me
contar seu “causo”, né?
Pois é,
milagres de fato acontecem para aqueles que acreditam neles, como se diz por
aí, e coisas boas acontecem com pessoas boas e puras de coração como a tia
Aurora, independentemente de credo, cor, religião. Sem entrar nesse mérito da questão,
“andar com fé eu vou que a fé não costuma falhar”. Aqui na roça é assim! Fim.
Tia Aurora – tia do dono da roça, viúva do tio Zé de quem o dono da roça é, ou foi, sobrinho de verdade. Entendido? |