terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Um Velho Carro de Boi

Logo na entrada da fazenda, há uns "restos mortais" do que um dia foi um imponente carro de boi. Reza a lenda aqui na roça que ele matou o seu condutor, virando sobre ele – o Sr. Ângelo – remanescente de escravos e que foi adotado pelo bisavô do Dono da Roça, o Sr. Isaque Gonçalves Soares. Era tão querido por ele que, além de usar seu sobrenome, herdou 60 alqueires de terra boa de plantar e de viver.
Começou como meeiro – agricultor que trabalha em terras que pertencem a outra pessoa. De forma geral, funciona assim: o meeiro ocupa-se de todo o trabalho braçal e, daí, reparte com o dono da terra o resultado de toda a produção. O dono da terra, por sua vez, fornece o terreno, bem como todo o material agrícola necessário para ajudar no trabalho, inclusive animais. À vezes, até uma casa e um pequeno terreno para cultivo particular do meeiro e sua família. Até hoje no Brasil essa forma de meação é muito praticada. O Dono da Roça aqui, vez por outra, faz esse tipo de transação.
Última produção de milho aqui da roça
De tudo ele, o Ângelo, fazia de tão trabalhador e, quando recebeu seu pedaço de chão, achou seu lugar ao Sol. Além de cultivar e vender hortifrutigranjeiros em geral, da cana fazia o caldo, a rapadura, o melaço fino, o melaço grosso, o açúcar, a cachaça, o álcool, forragem e sacharina para alimentação bovina. 
Do milho – a pamonha, o curau, a canjica, a pipoca, o cuscuz, o óleo, o creme de milho, angus, sopa, a ração dos bichos. E por aí vai.
Conduzia ele mesmo seu carro de boi transportando sua produção para vender nos arraiais vizinhos. Morreu trabalhando, como aconteceu com tantos outros antes dele e depois também. 



           Introduzido pelos colonizadores portugueses, o carro de boi foi um dos principais meios de transporte utilizados para transportar a produção das fazendas para as cidades, mas ainda é utilizado em algumas regiões do país, principalmente no nordeste.
Apesar de ser um meio bastante rústico, ainda há fazendeiros que realizam mutirões de carros de bois para transportar suas produções agrícolas e outros produtos.

           O som estridente característico do carro de boi é chamado de canto, lamento ou gemido e já faz parte da nossa cultura. Quando está em movimento esse som – o cantador – anuncia sua passagem. Na composição musical de Luiz Bonan Serafim Colombo Gomes, Poeira Vermelha, eternizada na voz de Sérgio Reis, diz no primeiro verso:


"O carro de boi lá vai gemendo lá no estradão 
Suas grandes rodas fazendo profundas marcas no chão 
Vai levantando poeira, poeira vermelha, poeira 
Poeira do meu sertão"

 Algumas das partes do carro de boi:
·         canga: peça em que se prende o cabeçalho ou o cambão,e que é colocada sobre o pescoço de dois bois, responsável pela transferência de energia mecânica ao cabeçalho.
·         canzil: Peças em forma de estacas trabalhadas que atravessam a canga de cima para baixo em quatro pontos, de modo que o pescoço de cada boi fique entre duas dessas estacas;
·         arreia: suportes que atravessam transversalmente o cabeçalho, sobre os quais se apoiam as tábuas da mesa;
·         cabeçalho: a longa trave que liga o corpo do carro à canga, que se atrela aos bois;
·         cantadeira: parte do eixo que fica em contato com a parte inferior do chumaço. O contato entre eles produz o som característico do carro;
·         cheda: Prancha lateral do leito do carro de bois, na qual se metem os fueiros;
·         cocão: Cada uma das partes fixadas por baixo das chedas, que servem para fixar, duas de cada lado do carro, cada um dos chumaços;
·         fueiro: cada uma das estacas de madeira que servem para prender a carga ao carro;
·         mesa: a superfície onde se coloca a carga;
·         Recavém ou, requebém, é a parte traseira da mesa.
·         tambueiro: Tira de couro cru, curtido e torcido, que serve para prender o cabeçalho ou o cambão à canga;
·         brocha: Tira de couro cru, curtido e torcido, que serve para prender um canzil ao outro passando por baixo do pescoço do boi.
·         Roda: feita de madeira nobre (Jacarandá), constituí de três pranchas unidas por travas de madeira (cambota) colocadas internamente nas pranchas por furos retangulares, estas fixadas por grampos e chapas de ferro. A circunferência é coberta com chapa de aço fixada à madeira com grampos de aço cuja forma arredondada deixa um rastro característico. (fonte:Dicionário de Caetitenês, de André Koehne; Museu do carro de boi)

São inúmeras as referências feitas ao carro de boi na música sertaneja de raiz. Escolhi um vídeo da dupla pioneira Tonico e Tinoco que junto a Anacleto Rosas Jr. compuseram a canção "Boi de Carro", na qual traçam um paralelo ao boi já velho com o trabalhador que avança na idade. Segue também a letra. Linda demais!
 
Na manguera
Da fazenda do Lajado
Conheci um boi maiado
Descaído como quê
Tempo de moço
Quando eu era candiero
Boi Maiado era ligero
Trabaiava com você.

Boi de carro
Hoje véio rejeitado
Seu congote calejado
Da canga que te prendeu
Boi de carro
Eu ainda sô teu cumpanheiro
Fiquei véio sem dinheiro
Teu destino é iguá o meu

Boi de carro
Sem valia tá afrontado
De puxá carro pesado
Costume que os patrão fais
Eu trabaiei
Trinta ano e fui quebrado
Do lugá foi despachado
Diz que eu já não presto mais.

Boi de carro
Seu oiá triste parado
Ruminando já cansado
Cô desprezo do patrão
Boi de carro
Eu também to ruminando
Essa mágoa vô levando
Dos home sem coração.

Boi de carro
O seu dia tá marcado
Pro corte foi negociado
P'rá mata no fim do méis
Adeus maiado
Meu sentimento é profundo
Vou andando pelo mundo
Esperando a minha veis.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Hoje tem marmelada? Tem, sim, sinhÔ!


Aconteceu no último domingo, dia 09 de fevereiro, a já tradicional Festa do Marmelo do povoado Mesquita, uma comunidade quilombola pertencente ao Município de Cidade Ocidental - GO, entorno de Brasília – DF. Eu e o Dono da roça fomos lá prestigiar. Fui, gostei e compartilho agora c'ocês.


Segundo contam, a cultura do marmelo na comunidade data do século XVIII, quando as primeiras mudas do marmelo (Cydonia oblonga) foram trazidas de Portugal para o Brasil e os boiadeiros trouxeram ao interior de Goiás ao cruzar os sertões.

A origem do povoado e da tradição da marmelada, segundo contam, se deu da seguinte forma: Mesquita era uma fazenda do capitão português Paulo Mesquita, que com o declínio da mineração resolveu abandonar as terras e então deixou a fazenda de herança para três escravas alforriadas vindas de Portugal que trabalhavam para ele e que ali ficaram vivendo e constituindo família. É delas a receita da marmelada. O quilombo foi se formando e ganhando força a medida que negros fugiam de garimpos e outras fazendas onde eram muito maltratados.
Antônia Pereira Braga (1900-2012)
uma das moradoras mais antigas de que se há registro do Quilombo Mesquita.
Completaria 114 anos no próximo 2 de maio
(reportagem mais completa, aqui:
 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidiano/55405-centenaria-quilombola-de-mesquita.shtml )

Os filhos se casavam entre as famílias do próprio povoado e viviam praticamente isolados da maneira tradicional. A comunidade plantava para sua subsistência e vendia os excedentes em Luziânia, antes conhecida como Santa Luzia. Daí, certamente, nasceu o nome da marmelada: Santa Luzia (nome usado até os dias atuais). E  assim seguiram - cultivando suas tradições e costumes, tendo no marmelo e na marmelada (o doce feito a partir do marmelo) a tradicional fonte de boa parte dos seus recursos externos.

João Antônio e sua marmelada
Seus descendentes seguiram a fabricação artesanal da marmelada, ou seja, o doce é embalado em caixas de madeira, feita pelos próprios produtores pois a marmelada conserva-se melhor em contato com a madeira.
Mauro Melo, produtor e fabricante do doce de marmelo no Quilombo Mesquita,
municipio de Cidade Ocidental Goiás
Lavagem e seleção do marmelo
 
Para a feitura do doce - o tacho de cobre. O fogão - um espetáculo a parte.
Cozimento do fruto do marmelo para fazer a polpa e depois o delicioso doce

Além da marmelada, a comunidade produz também, há mais de um século, a goiabada que também é feita artesanalmente, armazenada em caixinhas de madeira. Preservam e divulgam em eventos anuais esta herança econômica, histórica e cultural. Hoje em dia, com energia e frízeres, armazenam a poupa da fruta congelada, de forma que os marmeleiros, como são chamados, podem produzir os doces durante o ano todo.
A receita para se fazer a marmelada é simples: água, açúcar, marmelo maduro e fogo. Agora, quero ver a gente conseguir juntar 200 anos de tradição local no feitio dessa gostosura/iguaria brasileira.

A embalagem tradicional e usada por todos os produtores do doce no povoado
Fica, então, o meu registro dessa celebração à cultura, aos costumes e tradição de um povo injustiçado que conta, da forma mais sofrida, a história do nosso país. Apesar de todos os percalços que ainda enfrentam, como: a falta de incentivo para que a marmelada esteja ao alcance de mais consumidores e, o mais importante,  a certificação e legalização definitiva de uma terra que já foi demarcada como território quilombola pertecente ao Mesquita, esse povoado segue firme no propósito de preservar sua identidade. Como eles bem dizem: "um povo que nega sua raça, nega a si próprio".